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Alquimia Do Amor

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Chapter 1: Um homem com sangue de demônio

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Cabelos castanhos escuros esvoaçavam ao sabor do vento gélido, esculpindo a silhueta de um homem que muitos considerariam belo. No entanto, o fogo da vingança em meu peito era tão intenso que afastava qualquer um que ousasse se aproximar. A neve caía impiedosa, queimando minhas mãos desprotegidas, pois desde sempre recusei-me a usar luvas. 

Meu melhor amigo sempre me repreendia por isso, insistindo que devia me proteger. Mas agora, ele não estava mais aqui para dar sermões; havia sido possuído por um demônio. Temo que se ele estivesse aqui, certamente estaria me dando uma bronca agora. Como eu desejava ouvir sua voz uma última vez...

O mundo havia sido tomado por essas criaturas que não possuíam alma, desprovidas de qualquer vestígio de empatia. Demônios que caminhavam pela terra como sombras retorcidas, com olhos de brasa e garras que lembravam os sinos das catedrais, pesados e implacáveis. Eles eram os novos guardiões deste inferno , onde nenhuma oração podia alcançar o céu. Mesmo que alguém vendesse a alma para salvar aqueles que amava, não haveria misericórdia. Esses seres não conheciam compaixão.

Impossível… ” pensei, observando minhas mãos vermelhas pela neve que caía incessantemente sobre minha pele. A visão da neve caindo sempre me acalmava, mas eu não podia baixar a guarda... não agora.

Meus pensamentos foram interrompidos pelo ranger da porta. A imagem que apareceu trouxe uma onda de tranquilidade: era minha querida irmã, Miko, com uma bandeja de chocolate quente, tão reconfortante quanto o expresso que só ela sabia fazer.

— Irmão... o que eu disse sobre usar luvas? — perguntou ela, colocando a bandeja no criado-mudo ao lado da cama.

— Me desculpe... Eu gosto das leves queimaduras que a neve me causa... — murmurei, indo em direção a ela que estava sentada na cama.

— Você sabe que sua pele é sensível... — suspirou Miko, pegando um par de luvas pretas do criado-mudo e estendendo-as para mim. — Coloque, e não faça mais isso.

— Certo... — concordei obedientemente, colocando as luvas antes de me sentar na cama. — Poderia... fechar as cortinas e me dar um descanso? — perguntei, passando as mãos pelos cabelos e fechando os olhos.

— Claro — assentiu ela, fechando as cortinas antes de sair relutante do quarto.

Ela sabia que eu estava exausto. A última reunião do conselho me fez trabalhar mais do que o normal com o pelotão-anti-demônios.

"Olhos totalmente dilatados..." pensei, prestes a sucumbir ao sono, até que minha visão foi tomada por uma figura monstruosa. O demônio emergiu das sombras como uma aberração infernal, seus olhos ardendo com um brilho malévolo, a pele negra retorcida em formas grotescas e garras afiadas como navalhas.

Antes que eu pudesse reagir, ele se lançou sobre mim com a velocidade de um relâmpago. Suas presas se cravaram em meu pescoço, rasgando carne e tecido com uma voracidade insaciável. O grito de agonia que saiu de meus lábios foi um som primal, visceral, que reverberou pelo quarto como o badalar de um sino fúnebre.

Em um impulso desesperado, consegui acertar um chute violento no abdômen do demônio. Ele cambaleou para trás, caindo da cama com um baque surdo. O sangue quente escorria do ferimento em meu pescoço, tingindo minha pele de um vermelho profundo. Cada batida do meu coração parecia um martelo golpeando um prego, espalhando dor por todo o meu corpo.

Com a visão turva e os sentidos em alerta máximo, agarrei minha espada que estava ao lado da cama. O demônio se ergueu, os olhos chamejantes fixos em mim, uma expressão de ódio puro em seu rosto deformado. Com um rugido, ele se lançou novamente, mas desta vez, eu estava preparado.

A lâmina sagrada da espada cortou o ar com um silvo agudo, encontrando seu alvo com precisão mortal. O demônio gritou, um som horrendo que ecoou como um lamento profano. A espada se enterrou em sua carne, rasgando ossos e músculos. Ele se contorceu, desaparecendo em uma nuvem de cinzas e sombras, mas não antes de lançar uma faca em minha direção.

A lâmina se cravou na lateral da minha cintura, atingindo um ponto vital com uma dor lancinante. Soltei um grito de dor, o som reverberando pelas paredes do quarto. Meu sangue se misturava ao frio da madeira, cada respiração se tornando uma luta desesperada pela sobrevivência.

Com os olhos dilatados e a visão embaçada, caí no chão frio. Podia sentir o sangue escorrendo, a vida lentamente se esvaindo. Sabia que não deveria ter baixado a guarda... mas o fiz.

Estou cansado... — balbuciei, a voz um sussurro fraco, antes de ser levado pela escuridão que vem quando se fecham os olhos.

A última coisa que senti foi o frio da madeira contra meu rosto e a sensação avassaladora de ter falhado.

 

☩ 

 

Acordar…  

Era a última coisa que eu desejava. A ideia de me erguer da cama e enfrentar mais um dia me enchia de aversão. O peso das lembranças do sangue do demônio, aquele que me marcou há dois anos, ainda me atormentava. Não havia como escapar do ciclo implacável de dor e frustração, especialmente agora que minha existência era agora uma abominação. 

Levantei-me da cama, os pés descalços tocando o frio duro do chão de madeira polida. O quarto era uma fortaleza de opulência e solidão, com suas paredes revestidas de painéis de mogno escuro e tapeçarias pesadas, que pareciam absorver qualquer traço de luz. O mobiliário luxuoso, com seu estilo barroco, parecia uma piada cruel diante da miséria que eu vivia. 

Ao me aproximar da janela, a vista de fora era um manto branco e gelado que cobria a cidade. As ruas estavam imersas em um silêncio opressor, quebrado apenas pelo som das pessoas caminhando apressadas, encasacadas e tentando se proteger do frio. Observá-las, ignorantes do verdadeiro perigo, me causava um desgosto profundo. As crianças e os adultos saíam sem saber distinguir um humano de um vampiro, ou um vampiro de um demônio, e muitos pagavam o preço com suas vidas. A ironia cruel desse cenário não me escapava.

Abri a porta que dava acesso à varanda e o ar gelado me envolveu como um manto de agonia. A neve caía lentamente, uma visão imaculada que parecia contrastar com a desolação que eu carregava. Estendi a mão, vendo um pequeno floco cair sobre a pele, derretendo rapidamente. Um sorriso melancólico tocou meus lábios. A época do ano, com sua beleza fria e silenciosa, sempre fora minha favorita, apesar de ser um lembrete constante do que eu havia perdido.

— Ah... como eu amo esta época… — murmurei, minha voz carregada de um desdém triste.

O estrondo do telefone quebrou o silêncio do quarto, interrompendo meus pensamentos. Com as mãos ainda ardendo do frio, voltei para dentro do quarto e peguei o celular do criado-mudo. Atendi a ligação com um suspiro de frustração.

— Alô? — minha voz saiu áspera, refletindo o cansaço e a irritação.

O quarto, com sua decoração opulenta, parecia um mausoléu de luxo, sufocante em sua grandiosidade. As paredes ornamentadas e o lustre de cristal, em vez de oferecerem consolo, apenas ampliaram minha sensação de isolamento.

— Olá, irmão! — a voz de minha irmã Hiyori soava alegre e irreverente, um contraste gritante com a atmosfera sombria que me envolvia.

— O que você quer? — respondi, meu tom de voz expressando claramente meu desdém.

— Só queria saber como está meu irmãozinho… — a preocupação disfarçada de informalidade na voz dela era um pequeno alívio.

— Você sabe que me tornei quase imortal , não é? — retruquei, o silêncio na linha respondia por si mesmo.

— Espere…Takato…! — o pânico na voz dela foi interrompido pelo som do vidro quebrando.

— O vaso quebrou — falei, o corte na minha mão começava a sangrar. — Hiyori, diga logo o que quer — minha voz se tornou mais rígida.

— Céus…olhe, Takato, estou organizando uma festa para os negócios da família…— disse Hiyori..

— E por que está me contando isso, precisa de permissão agora? — perguntei, observando o corte. O sangue. 

— Você é o chefe da família, esqueceu? — o sarcasmo na voz dela era palpável. — Precisa saber do que acontece ou deixa de acontecer. 

— Hmph… — resmunguei. 

— Você ainda não fez um curativo!? — a voz dela tomou um tom de pânico e frustração. Alto demais. 

— É difícil fazer duas coisas ao mesmo tempo quando você grita a cada resposta que dou...— respondi com um leve sarcasmo.

Ela pareceu ignorar: — A festa será esta noite... e você tem que estar presente — Hiyori ordenou, sua voz deixando claro que não havia espaço para negociações.

— Certo, até mais, Hiyori. — tentei manter a calma, embora a irritação me dominasse.

— Cuide do corte. Pode infeccionar. Tchau, irmãozinho! — ela desligou, a preocupação ainda evidente em seu tom.

— Humph…— resmunguei, olhando para o corte que agora começava a doer, afinal, a dor não se absteve; abri a gaveta e peguei o necessário: algodão, álcool e faixas.

Depois de tratar o ferimento, lembrei que precisava de um terno novo para a noite. Arrumei-me rapidamente e saí, enfrentando o frio cortante que parecia um reflexo da minha própria condição interna. Cada passo nas ruas cobertas de neve, com o vento frio acariciando meu rosto, parecia uma metáfora para minha vida abominável. 

 

MADRID 

8:00AM

 

— Junta! — exclamou uma mulher com cabelos negros e olhos rosa, aproximando-se com um brilho de urgência no olhar.

Junta, com um olhar distante, repousou a xícara de chá sobre a mesa de mármore que estava no jardim. O aroma das flores e o som suave das folhas balançando ao vento contrastavam com o tumulto interno que ele tentava mascarar.

— Fale — disse Junta, apoiando o queixo na mão, observando a jovem com desinteresse.

— Hoje haverá uma festa na casa da família Saijo! — anunciou ela, sua voz carregada de entusiasmo.

Junta arqueou uma sobrancelha, seus olhos azuis profundos fixos no vazio.

— Terei que ir? — perguntou, a indiferença evidente em seu tom de voz.

— Sim. Além de ser bom para os negócios do Clã, você sempre teve interesse em conhecer o chefe da família Saijo — disse a mulher, sentando-se ao seu lado, com um sorriso mesquinho.

— Você sabe que desprezo Saijo Takato…— afirmou Junta, sua voz carregada de desprezo. — Ele é um homem insuportavelmente arrogante, sempre se impondo e sendo idolatrado sem motivo aparente.

— Hã? — A mulher pareceu confusa, uma expressão de perplexidade no rosto.

— Ele age como se estivesse acima de todos — continuou Junta, cerrando os dentes em um misto de raiva e frustração. — Sua reputação como caçador de demônios e vampiros não justifica o culto que recebe, Yurie. 

— Mas, um dia você já admirou Saijo Takato — observou Yurie, sarcástica. — Apenas porque ele é um caçador não é motivo suficiente para o desprezar.

— Não é apenas isso. Eu também sou caçador — respondeu Junta, sua voz carregada de desdém. — A diferença é que não gosto dele.

— Você não apresentou um motivo claro — retrucou Yurie, cruzando os braços com uma expressão desafiadora.

Junta revirou os olhos e levou a xícara de chá aos lábios, bebendo um gole antes de responder.

— Se for bom para os negócios, então irei — disse ele, pegando uma torrada com geleia e mordendo-a com um desgosto velado. — Agora, se me der licença, desejo terminar meu café da manhã em paz.

— Está bem... — murmurou Yurie, sua voz revelando a decepção enquanto ela se afastava resignada.

Momentos depois, Junta terminou seu café da manhã e levantou-se com um movimento gracioso, mas decidido. Caminhou pela mansão, seus passos ecoando no mármore polido do corredor. O interior da mansão era um exemplo de opulência e discrição, com paredes de um tom creme suave e tapeçarias que adicionavam um toque de requinte.

Ao subir as escadas, cumprimentou os empregados com um aceno de cabeça, seu olhar indomável permanecia focado em seu destino: a biblioteca. 

A biblioteca era seu refúgio. As paredes eram revestidas de painéis de madeira escura, enriquecendo o ambiente com um tom sóbrio e acolhedor. Estantes repletas de volumes antigos e bem conservados formavam um labirinto de conhecimento, enquanto o piso de madeira polida refletia a luz suave dos lustres de cristal. Duas poltronas de couro preto, impecavelmente estofadas, estavam posicionadas ao redor de uma pequena mesa, sobre a qual repousava um elegante abajur de bronze.

Junta retirou um livro da estante: "Os Contos de Cantuária", de Geoffrey Chaucer. O livro parecia um alívio para sua mente turbulenta, e ele se acomodou na poltrona, imergindo-se na leitura com um foco intenso. As palavras de Chaucer ofereciam uma breve fuga de sua realidade carregada de ambição e ressentimento, e, por um momento, o mundo exterior parecia distante e irrelevante.

 

MOSCOU

9:00AM

TAKATO

 

 

Eu olhei para o conjunto de roupas exposto na loja. A blusa cinza escuro, a calça jeans e o blazer preto chamaram minha atenção. Era o tipo de roupa que exalava uma sofisticação discreta, perfeita para minha personalidade. Sem qualquer emoção visível, apontei para a peça e disse:

— Eu gostei desse.

O vendedor, um homem de meia-idade com um olhar profissional, prontamente informou o preço. 

— O total será 80.000 rubles.

Os números estavam fixos na minha mente. A quantia era irrelevante; o dinheiro nunca foi um problema. Com uma expressão impassível, retirei um maço de notas da minha carteira de couro e entreguei ao homem. Ele pegou o pagamento e, sem pressa, embalou as roupas em um saco elegante. Agradeceu-me com um sorriso cordial, que ignorei ao máximo. 

— Volte sempre! — exclamou o vendedor, enquanto eu me virava para sair da loja. Sua tentativa de cordialidade me parecia quase patética. Um simples assentimento foi tudo o que ofereci em resposta.

O frio cortante do exterior me atingiu quando deixei a loja. A neve cobria o chão, formando uma camada macia que fazia o ambiente parecer um pálido cenário de inverno. Eu me abrigava da tempestade no interior do meu sedã preto, um carro que era um símbolo de status e conforto. Entrei no veículo, sentindo o calor aconchegante contrastar com o frio brutal que dominava lá fora.

— Ryuu, vamos a um restaurante. Estou com fome — ordenei, enquanto me acomodava no banco de trás. A demanda foi simples e direta, sem espaço para discussão.

— Certo, senhor — respondeu Ryuu, o motorista, com um tom respeitoso que era mais um reflexo de sua profissão do que de qualquer tipo de relação pessoal. Ele ajustou os espelhos e ligou o motor, que roncou suavemente enquanto o carro começava a se mover.

Observava a cidade através da janela, onde os poucos pedestres se moviam apressados sob roupas pesadas, lutando contra o inverno russo. A neve continuava a cair, criando uma paisagem quase etérea. O contraste entre o frio lá fora e o luxo do meu carro era um lembrete constante da distância entre mim e o mundo comum.

O trânsito estava leve, uma sinfonia de sons abafados que chegavam até mim em um murmúrio distante. Eu me sentia alheio a tudo isso, como se estivesse observando a cidade através de um vidro frosted . A vida ao meu redor continuava com uma banalidade que me era estranha e, de certa forma, desagradável. O que para muitos seria uma cena cotidiana era para mim uma lembrança constante do abismo entre a minha existência e o resto do mundo.

Quando chegamos ao restaurante, o local era um refúgio acolhedor do frio cortante que dominava lá fora. O restaurante "Aurora" era um estabelecimento de classe média, com uma fachada de vidro que refletia as luzes da rua, criando um brilho suave e convidativo. As portas duplas de madeira escura se abriram para revelar um interior elegante, onde uma iluminação suave e chandeliers de cristal lançavam um brilho quente sobre os clientes. O piso de mármore polido e as paredes adornadas com painéis de madeira escura criavam uma sensação de sofisticação discreta.

Enquanto adentrava o ambiente, o murmurinho das conversas e o som dos talheres sobre pratos finos preenchiam o espaço. As mesas, elegantemente dispostas, estavam cobertas com toalhas brancas e centros de mesa de flores frescas. A atmosfera era agradável, mas não particularmente silenciosa; o som das conversas e do barulho dos pratos adicionava uma vivacidade ao local.

Fui guiado a uma mesa central e, ao me acomodar, o garçom se aproximou com um menu. Com um gesto rápido, fechei o menu e declarei:

— Quero Okrochka .

O garçom anotou meu pedido com um sorriso cortês e informou o custo:

— Certo, ficará 550 rubles.

Assenti, e o garçom retirou-se para preparar meu pedido. Com um olhar pensativo, examinei a bolsa contendo o novo traje que havia comprado mais cedo, refletindo sobre como a roupa se ajustaria à ocasião.

As conversas ao meu redor começaram a capturar minha atenção. Em uma mesa distante, ouvi uma jovem sussurrar:

— Olha lá, é o Saijo Takato.

Uma segunda voz, carregada de ceticismo, respondeu:

— O que alguém como ele faz nesse restaurante sem nenhuma classe?

A terceira, com um tom curioso, questionou:

— Será que ele é casado ?

Eu ignorei os murmúrios, mas a sensação de desconforto era palpável. Meus olhos fixaram-se no garçom que se aproximava com a tigela de Okrochka . No entanto, antes que pudesse recebê-la, tomei uma decisão.

— Poderia embalar para viagem? Aqui está muito barulhento — pedi ao garçom, enquanto me levantava da mesa. — E poderia trazer a conta também? — Adicionei, oferecendo um sorriso contido.

O garçom, um homem jovem e eficiente, assentiu e levou o pedido para ser embalado. Enquanto isso, aproximei-me das jovens na mesa distante e, com um tom imperturbável, falei:

— Para a informação de vocês, eu não me importo em comer em outros lugares, inclusive aqui. E, na verdade, eu gosto deste restaurante e o frequento frequentemente. Se não gostam do ambiente, talvez devessem considerar se retirar.

As garotas ficaram visivelmente envergonhadas e o restaurante inteiro parecia sintonizado no breve confronto. A tensão era palpável, mas logo o garçom retornou com a tigela embalada e a conta. Coloquei 1000 rubles no mini caderninho e disse:

— Fique com o troco.

Saí do restaurante com um senso de satisfação silenciosa, dirigindo-me ao carro. Ryuu estava à espera, o carro já aquecido contra o frio implacável. Entreguei-lhe a caixinha com a sopa, ignorando sua tentativa de recusa.

— Fique com a sopa — ordenei..

Ryuu olhou para mim, hesitou por um momento, mas finalmente aceitou o pedido e colocou a sopa no banco do passageiro. Sem mais palavras, ligou o carro, e eu me acomodei no banco de trás, deixando que a cidade passasse em um borrão de luzes e neve enquanto o carro avançava para nosso próximo destino.

 

JUNTA

16:30pm

 

 

A irritação que sentia ao acordar era palpável, o cansaço físico e mental pesando sobre mim como uma nuvem espessa. A viagem extenuante de Tóquio a Moscou tinha deixado suas marcas, e a interminável sequência de reuniões havia drenado minha energia. A mente parecia ainda ecoar o som dos debates acalorados e a pressão constante das decisões que eu fora forçado a tomar. A ideia de uma noite de descanso parecia um luxo distante.

 

— Hmm... me deixe dormir — murmurei, com a voz rouca e arrastada, ao sentir um empurrão irritante no ombro.

— Vamos, Junta, acorde! — gritou Yurie, sua voz ressoando pelo quarto. — Já são 18:30! Levante-se imediatamente!

Bufei em resposta, me esforçando para me levantar da cama. O cansaço se fazia sentir em cada músculo do meu corpo. Caminhei em direção ao banheiro, movendo-me lentamente.

— Eu estou exausto, trabalhei o dia todo — resmunguei, enquanto me dirigia ao banheiro. — E a viagem de Madrid a Moscou foi desgastante. Não é só o trabalho que me cansa, é o impacto psicológico disso.

— Participar de reuniões não é fisicamente cansativo como um trabalho manual, mas certamente é extenuante mentalmente — afirmou Yurie, sua voz ainda audível do lado de fora da porta do banheiro.

O som da água do chuveiro começou a preencher o espaço, abafando um pouco das conversas.

— Não importa o que você acha, saia daqui!— gritei, com a voz abafada pela água.

— Não há nada aí que eu não tenha visto — Yurie gritou de volta, um toque de provocação na voz.

— Vá se danar, sua pervertida. Saia agora mesmo! — respondi, irritado, o tom de voz cortante.

— Olha quem fala... — retrucou Yurie, andando em direção à porta. — Seu virjão de merda! — Gritou, antes de sair do quarto com um slam na porta.

Senti um misto de frustração e alívio ao estar finalmente sozinho. O chuveiro, com sua água quente, oferecia um alívio temporário para os músculos tensos e para a mente fatigada. A viagem de Madrid a Moscou havia sido cansativa, uma maratona que parecia interminável. As discussões durante as reuniões eram intensas, e o deslocamento por fusos horários não facilitava. (Apesar da diferença ser apenas de uma hora). Mas agora, com um pouco de paz momentânea, eu poderia focar em recuperar minhas forças antes do próximo desafio que a noite pudesse trazer.

 

 

Saí do Range Rover, e uma empregada com um uniforme impecável e um sorriso protocolar se aproximou para receber meu sobretudo e cachecol. Enquanto ela os retirava, eu pude sentir o contraste entre o frio cortante da noite e o calor acolhedor que emanava do interior da mansão. A sensação de estar na iminência de entrar em um ambiente distinto e requintado era palpável.

Ao atravessar o hall de entrada, fui saudado pela visão deslumbrante do evento que estava por vir. O salão principal da mansão estava magnificamente decorado, com um piso de mármore polido refletindo o brilho suave dos lustres de cristal que pendiam do teto. As luzes douradas desses lustres criavam um efeito cintilante que destacava a arquitetura clássica da casa — colunas esculpidas e paredes adornadas com painéis de madeira escura. O ambiente era uma fusão elegante de tradição e luxo, perfeitamente adaptado para uma ocasião de alta sociedade.

Vesti-me com cuidado para a ocasião: uma blusa branca impecável, uma gravata negra com um nó perfeitamente ajustado, um colete verde escuro que acentuava a gravidade da situação, e uma calça preta de corte clássico, completada por sapatos sociais de couro marrom escuro. Cada peça do meu traje foi escolhida para transmitir uma aura de autoridade e sofisticação, como se eu estivesse me preparando para não apenas participar do evento, mas para dominar a cena.

Enquanto me movia pelo salão, notei a agitação e a energia que preenchiam o espaço. Os convidados, com suas roupas de gala — homens em ternos de corte perfeito e mulheres em vestidos de seda e veludo, adornados com joias cintilantes — se misturavam em um mar de luxo e prestígio. O som do murmúrio de conversas sofisticadas e o toque suave dos copos de cristal sendo erguidos formavam uma sinfonia de opulência.

Yurie, ao meu lado, se afastou para se encontrar com suas amigas. Observei-a se misturar com a multidão, seu passo confiante e sua postura destacando-se em meio ao mar de rostos e roupas elegantes. Eu, por outro lado, procurei um refúgio na sombra de uma mesa reservada no canto do salão, longe da agitação e do brilho excessivo. 

A mesa onde me acomodei estava estrategicamente posicionada, permitindo-me uma visão panorâmica do ambiente sem me perder na multidão. O espaço ao meu redor era uma composição de requinte e exclusividade, com arranjos florais luxuosos e velas acesas criando um ambiente acolhedor e sofisticado. 

Entre os presentes, reconheci algumas figuras de destaque no mundo dos caçadores e influentes da alta sociedade. Eles se movimentavam com uma combinação de autoridade e discrição, seus sussurros e olhares trocados revelando uma hierarquia de poder e influência que era tanto fascinante quanto intimidante. Cada interação era uma peça em um complexo jogo de estratégia e controle.

Sentado ali, absorvendo a cena ao meu redor, não pude evitar um sentimento de desconexão. Embora o luxo e a formalidade do evento fossem inegáveis, havia uma parte de mim que se sentia distante, como um observador de um mundo que, apesar de ser meu, parecia sempre um passo além do meu alcance verdadeiro. O brilho e a ostentação contrastavam com a realidade sombria e desafiadora que eu carregava, criando uma sensação de alienação que me fazia refletir sobre minha posição e papel neste universo...

 

 ☩

 

— Hiyori, o que achou desta roupa? — Perguntei, observando meu reflexo no espelho com um misto de insegurança e esperança.

— Está bem bonita, irmão — respondeu ela, o tom de entusiasmo em sua voz não conseguia esconder a exasperação que sentia.

— Tem certeza? — Questionei, ajustando a gravata e olhando para a calça de corte impecável.

— Sim, sim! Vamos logo, parece que você está se trocando há uma eternidade! — Gritou Hiyori, impaciente.

— Tudo bem... — Respondi, calçando meus sapatos sociais com cuidado. — Pronto, vamos.

Saímos do quarto e nos dirigimos para o salão, a expectativa e a ansiedade se misturando com o eco dos nossos passos em um piso de mármore polido. Ao entrar no salão, a visão era avassaladora: o espaço estava iluminado por lustres de cristal que lançavam um brilho suave sobre o ambiente, destacando o luxo das decorações e o esplendor das roupas dos convidados. A sofisticação e o glamour estavam em cada detalhe, desde os arranjos florais exuberantes até as toalhas de mesa finamente engomadas.

Ao meu redor, homens em ternos de alta costura e mulheres em vestidos de gala se moviam com uma elegância calculada. Meu olhar se desviou para uma mesa isolada no canto do salão, onde um homem de presença marcante, Azumaya Junta, se encontrava. O contraste entre a postura dele e a ostentação do ambiente ao seu redor me chamou a atenção. Hiyori percebeu meu foco e, com um entusiasmo contagiante, me puxou em direção àquela mesa.

Quando nos aproximamos, o olhar de Azumaya foi instantaneamente atraído para nós, o desdém estampado em seu rosto. Hiyori, sem hesitar, rompeu o silêncio constrangedor com sua habitual efusão.

— Oh, você é o Azumaya Junta! — Exclamou, a empolgação em sua voz quase visível. — Prazer, sou Saijo Hiyori! E este é meu irmão, Saijo Takato.

— Prazer... — Respondi, estendendo a mão. Azumaya retribuiu com um aperto firme, seu tom baixo e quase desdenhoso.

— Vou pegar umas bebidas! — Anunciou Hiyori, se afastando em direção ao bar.

— Pode sentar, se desejar — ofereceu Azumaya, sua indiferença clara na entonação.

— Com licença — disse, acomodando-me na cadeira oposta à dele. Havia algo no ambiente que fazia a tensão palpável, um confronto silencioso que eu não conseguia ignorar. — Eh... quantos anos você tem? — Perguntei, um pouco constrangido, tentando realmente quebrar o gelo. 

— 23 anos — respondeu Azumaya com uma calma inquietante, seus olhos não se desviando do copo de vinho.

— E eu tenho 28 — revelei, observando sua expressão impassível. Azumaya fez um leve aceno de cabeça.

— Você é bem velho — comentou ele com um sorriso provocativo. — Tem esposa, Senhor Saijo?

— Já casei, mas ela me abandonou há um ano... — Respondi, mantendo a voz firme apesar da dor antiga que a lembrança evocava.

— Eu faria o mesmo — disse ele, o tom ácido em suas palavras. — Quem gostaria de suportar o cheiro de um demônio em seu marido? — A provocação era clara e direta, e eu senti uma onda de irritação crescente.

— O que você está insinuando? — Perguntei, tentando manter a compostura. Meu olhar fixou-se no chão, esforçando-se para controlar a raiva e a confusão.

— Vejo o olhar de um monstro em você... — prosseguiu Azumaya, seu tom de voz penetrante. — Um monstro que pode perder a sanidade a qualquer momento. Você a matou, não é? — Sua acusação direta e implacável me fez sentir um choque frio.

Não é da sua conta — retruquei, tentando manter a voz controlada. — E se você pensa que pode me abalar com suas palavras, está muito enganado.

— Ah, claro, o típico orgulho de um caçador — disse ele, com um sorriso cruel. — Mas você sabe, um caçador que não consegue lidar com suas próprias feridas é apenas um predador à beira da loucura. 

— E você, Azumaya, parece que vive apenas para fazer provocações vazias — respondi, o desafio claro na minha voz. — Se isso é tudo o que tem a oferecer, talvez seja melhor se calar… 

No instante em que Hiyori voltou com a bandeja de bebidas, eu me levantei, decidindo que a conversa já tinha ido longe demais.

— Irmã, não me sinto bem — murmurei, me levantando abruptamente. — Vou me retirar por enquanto... — Declarei, afastando-me rapidamente da mesa e caminhando em direção à multidão, ignorando os protestos de Hiyori.

—O que?! Mas você acabou de chegar! — protestou Hiyori, mas eu já estava me afastando, ignorando os apelos dela.

Ao chegar em meu quarto, trancando a porta atrás de mim, joguei-me na cama, o peso das palavras de Azumaya me oprimindo. 

 

— Por que ele disse aquelas coisas? — Perguntei a mim mesmo, o desconforto e a confusão transbordando. — Quanto mais ele falava, mais eu sentia facas em todo o meu corpo, seu tom calmo, mas ácido, penetrando em minha mente...

 

Cobri-me com os lençóis, tentando afastar os pensamentos que martelavam em minha cabeça. A culpa me consumia, e o egoísmo que carregava como uma armadura parecia desmoronar. Eu era um homem dividido entre a imagem fria e calculista que apresentava ao mundo e o medo palpável da sociedade que se escondia atrás dessa fachada. 

 

O sangue de demônio que corria em minhas veias parecia, naquele momento, mais uma maldição do que uma vantagem.